21 setembro 2005

Para Alem do Arco Iris

.

I

Aquela noite de tormento chegava finalmente ao fim. O meu corpo, anestesiado pelo cansaço ia-se impondo lentamente enquanto uma enorme angustia se instalava no meu coração. Fazia exactamente um ano, numa outra alvorada, que tinha partido numa busca que era só minha.
Sentia uma enorme necessidade de conhecimento e tudo se tinha tornado monótono, sem sentido, parte de uma realidade totalmente previsível. A vida tinha que ser mais do que acordar, tomar banho, vestir, fazer a maldita da barba e obrigar-me a tomar um pequeno-almoço que a nada me sabia. Só o primeiro cigarrinho, frequentemente aromatizado por essências do norte de África, me motivava para pôr a comida de lado de lado e fazer-me á vida.
Isabel tudo isto via e, com mágoa, após tudo ter preparado com carinho, deitava o café e os ovos no lixo. Perguntava, enquanto o fazia, se não estaria a deitar fora pedaço a pedaço o amor que sentia. Então voltava para a cama, enroscava-se em volta do bebé e imaginava que o mundo era feito de cores brilhantes, em que todos se amavam e onde a sua felicidade era ao lado do seu amor.
João lutava com a sua consciência, negociava com ela a possibilidade de alterar as suas prioridades. Sabia perfeitamente que não podia continuar a chegar atrasado ao trabalho e estava constantemente a procurar justificações para o que já tinha deixado de ser uma opção e se tornado numa necessidade. Tinha-se tornado um mestre em enganar-se a si próprio pondo cada vez mais o seu mundo secreto em primeiro lugar. Nessa manhã o trânsito estava pior do que nunca.
Fazia-lhe confusão a maneira como as pessoas disputavam um palmo de estrada a caminho do emprego, iniciando o seu dia logo em contacto com o pior que há dentro delas. Após várias ultrapassagens mal calculadas, assumindo riscos irresponsavelmente, empancou atrás de um camião enorme. Estava cada vez mais atrasado para o trabalho.
A estrada era particularmente sinuosa o que contribuía para aumentar a sua ansiedade. Se tivesse um carro de jeito passaria o camião num instante, pensou João enquanto desfilavam vários modelos de automóveis que compraria caso lhe saísse o totoloto.

- Caramba, nunca mais consigo trocar de carro.
Já estou farto desta carroça bandeirosa.

Para um tipo como ele era uma vergonha andar por aí ao volante de um carocha descapotável cor-de-rosa. Tinha sido oferecido pelo pai de Isabel, pois ele nunca tinha tempo para a ir buscar ao trabalho e ela acabava por voltar sempre para casa á boleia ou de transportes públicos. Nessa altura andava ao volante de um possante Opel Corsa Gt, sempre em perseguição dos seus muitos compromissos. Andava sempre atrasado e, numa “distracção” fatal, tinha praticamente destruído o carro. Não se tinha aleijado mas o carro estava quase sem arranjo e o seguro tardava em dar luz verde ao mecânico para a reparação. A culpa tinha sido sua mas, como de costume, tinha dado a volta á situação e mais uma vez não tinha de arcar com as consequências da sua maneira irresponsável de estar na vida.
Faltavam vinte minutos para as nove da manhã e ainda tinha que passar pela casa do Jorge. Que merda de vida, disse para si mesmo enquanto uma paisagem estonteante passava por ele sem que se apercebesse de que o mundo é um assombroso quadro vibrante de cor e vida. Só pensava numa coisa, ainda não tinha fumado a sua ganza matinal e estava irritado. Zangado com a vida, com a Isabel por lhe estar sempre a perguntar pelas suas promessas, não tinha culpa de a vida lhe ser madrasta. Ligou para o Jorge, voltou a ligar e nada, chamava e chamava sem ninguém atender. Voltou a tentar ultrapassar o camião, meteu uma mudança a baixo, acelerou e lançou-se á aventura. Surgiu um carro de frente e entre a chamada telefónica, a manete das mudanças e o volante nem soube como conseguiu voltar á sua faixa, sempre atrás do maldito camião. Não tinha tempo a perder e o sacana não atendia. As suas essências aromáticas estavam no fim e era inconcebível passar uma hora que fosse sem aquele confortável volume no seu bolso.
- Estou, Jorge? Até que enfim meu malandro, estás em casa?
- Estou! O que é que queres para telefonares a esta hora, não sabes que eu só me levanto lá para as 10 horas. Que chatice meu!
- Não posso falar pelo telefone, chego aí em 5 minutos.
- Vê lá se não demoras, o meu sono de beleza é importantíssimo para mim.
- Vá lá meu, são só 5 minutinhos e chego aí.
- Tudo bem meu, sabes estou sempre ao serviço do pessoal, 24 horas por dia...

O carocha vibrava, pulava num esforço admirável para se manter a par da ansiedade que crescia no seu peito. Eram já nove e um quarto e o emprego que esperasse. O chato do seu chefe já ia ter motivo para lhe partir a cabeça outra vez.
Aquele sacana parecia que tinha um único objectivo na vida, chagar-lhe o juízo por tudo e por nada. No meio de tudo isto, só a hora em que saia do trabalho lhe fazia sentido. O charrinho fumado ás escondidas, os seus discos, os livros, o snooker no bar da terra e as conversas com os amigos á volta de um charro davam sentido a vida. Por um instante todo o peso do mundo levantava-se e a vida assumia contornos de felicidade. Flutuava acima dos problemas dos outros e tudo o que via lhe parecia absurdo, tão absurdo que deixava de fazer sentido. O trabalho e o casamento, os compromissos sociais, a renovação do bilhete de identidade, que seca...
A casa do Jorge começava a surgir no cimo da colina. O camião foi deixando aos poucos de lhe fazer confusão à cabeça e o mundo ficava suspenso enquanto se deliciava com a perspectiva de um novo dia à sua maneira.
Bateu e um Jorge ensonado abriu a porta do “palácio do prazer”, um casebre pobre e imundo que para ele era o paraíso. Passava horas a fio naquele canto secreto do mundo onde era quem gostaria de ser, falando de grandes ideais e de projectos megalómanos que iria em breve concretizar. Toda a gente que por lá passava e partilhava aqueles momentos aplaudia a sua iniciativa, a sua visão para o negócio e partilhavam da abundância do tal empresário de sucesso. Era o maior ali dentro, o mundo estava a seus pés...

- Bom dia, granda preguiçoso que tu és, ainda na cama a esta hora?
- Ouve lá meu, mete uma coisa na cabeça, estar na cama a esta hora é para quem pode e não para quem quer.
- Eu querer queria mas realmente não posso. Tenho a Isabel e o miúdo, uma casa para sustentar e uma trampa de vida para viver.
- Diz lá o que é que queres e pira-te para outras paragens que eu pela manhã não tenho paciência para aturar vendidos ao sistema como tu.
- Deixa-me entrar, falamos lá dentro que aqui dá muita bandeira.
- Diz lá o que é queres, já te disse que a paciência...

João afastou o Jorge bruscamente e forçou passagem para dentro da casa. Estava escuro mas, na penumbra, viu de relance uma rapariga que tentava sem sucesso esconder a sua nudez.
Era extremamente bela mas uma estranha tristeza emanava do seu rosto. Não parecia fazer parte daquele lugar.
Uma casa permanentemente na penumbra, desarrumada, senão imunda e nos seus detalhes perfeitamente surreal.
Um corredor longo e estreito dava acesso ás várias divisões da casa. O chão era de cimento nú, sempre sujo, a casa de banho não tinha água nem papel higiénico.
Sorrindo João lembrou-se que uma vez tinha limpado o cú à cara do Saddam Hussein pois em vez de papel higiénico só havia um jornal velho. A vida é gira por causa destas coisas que iam acontecendo. O pior era se não houvesse papel nenhum.
Como as restantes divisões estavam ocupadas, sempre alugadas a estranhos que por ali se instalavam, desaparecendo em seguida sem deixar rasto. Aquela casa parecia uma pousada da juventude perdida, as pessoas chegavam e partiam ao sabor das marés. O Jorge ficava com o seu quinhão e ao mesmo tempo aliviava a solidão, sua fiel companheira na angustia que tentava esconder no fundo da sua alma.
O Jorge vivia na sala, havia velas acesas por todo o lado. As características estalactites, suspensas dos rebordos dos móveis, davam ao quarto um ar macabro, como um altar em honra de uma obscura divindade.
O chão era de terra batida e um cheiro a mofo invadia as narinas. A electricidade não era um bem de primeira necessidade para o Jorge. Tinham levado o contador por falta de pagamento e longe iam os tempos em que um rapaz cabo-verdiano tinha feito uma puxada de um poste que por ali havia. Ficara com a alcunha do Zé da EDP e passara a usufruir de uma posição privilegiada junto ao senhor da casa. Água ainda havia pois a barraca tinha sido construída em redor de uma torneira pública. Uma só janela dava para a rua, era como uma chaminé por onde os sonhos distantes de uma felicidade perdida se esfumavam no horizonte. Um sofá cama completava aquele quadro surrealista. A presença dela era a pedra de toque daquela composição. Estava deitada no sofá, como se fosse uma oferenda a um qualquer Deus obscuro naquele altar macabro. O olhar vazio, fixo num horizonte distante, imperturbável, impressionou João que se aproximou perguntando quem era e o que ali fazia.
Ela baixou os olhos tapando a sua nudez. O seu silêncio projectava uma profunda vergonha enquanto um desespero velado se apossava lentamente do seu rosto.

- Eu conheço-te de qualquer lado, disse João sorrindo.
- Não sei, como passo a vida a andar de um lado para o outro é possível que sim.
- Eu nunca me esqueço de uma cara e a tua é me familiar.
- Eu também nunca me esqueço de uma cara mas não me lembro de ti.
- Podia jurar que não só te conheço mas que os nossos caminhos se cruzaram no passado.
- De certeza que me lembraria se assim fosse.
- Fala-me um pouco de ti que pode ser que me recorde.
- Não há nada para falar, pelo menos nada de interessante.
- Deixa que seja eu a ajuizar se é ou não interessante o que tens para contar, toda a gente tem uma história e de certeza que não és exepção.

Ela hesitou, já há algum tempo que não falava dela. Preferia esquecer. Já não tinha confiança nas pessoas mas o sorriso franco e aberto daquele desconhecido despertou-lhe algo no coração. Sem levantar os olhos disse-lhe que se chamava Mia e que era de Lisboa.
Que gostava de flores, gostava do cheiro da alfazema e de se deitar na erva.
Gostava de contemplar o céu azul salpicado de nuvens.
Gostava de correr descalça pelos campos, de sentir o orvalho, de fechar os olhos e deixar-se levar que sentia.
Também gostava de sentir o doce calor do sol na sua pele.
Gostava de sonhar em voz alta, imaginando que Deus a ouvia e a embalava no aconchego do canto quente das cigarras.
Enquanto falava João reparou que um brilho surgia nos seus olhos. Eram de um azul-marinho raro e singular, salpicados de cinzento, lembrando o Céu com que gostava de sonhar.
Sim, sonhar, pois falava como se tivessem passado mais de mil anos desde a última vez que se deitara na erva, embalada pelo canto das cigarras.
Uma lágrima despontou, era como um cristal feito de pura dor. Rolou pela sua face e caiu para o chão imundo.
Pelas persianas entrava um raio de luz que, ao incidir naquela lágrima, explodiu em tons de arco-íris iluminando-lhe a alma sofrida.
Levantou-se, compôs o vestido e, deixando que o João vislumbrasse o seu corpo magro e sofrido, sorriu.
Timidamente pediu desculpa e retirou-se para a casa de banho.
Coisas de mulher que os homens não compreendem, justificou.
João ficou imóvel por um momento, desejava saber de onde vinha toda aquela mágoa que transparecia no seu rosto, se materializava nas suas lágrimas e se escondia naquele sorriso luminoso, cativa de uma vergonha profunda. Vergonha da saudade que sentia, saudade de si mesma ou talvez vergonha da forma como vivia.
Após uns momentos voltou, tinha ao pescoço um fio com a fotografia de uma criança, de 3 ou 4 anos de idade apenas. Disse-me que era a sua filha e que morrera recentemente. Contraíra meningite e numas horas apenas tinha entrado num sono profundo do qual nunca regressara.
O seu marido partira deixando-lhe a culpa e a droga como companheiras e a angustia e a prostituição como recurso.
A sua vida era agora um constante esquecer, um fugir de recordações, de si mesma e da sua dor.
Que absurdo Deus lhe parecia.
O João não compreendia mas sentia que havia algo de nobre naquela lágrima. Espelho de uma dor tão profunda.
Jorge olhava desconfiado para o João tentando descobrir o que lhe ia na alma. Pensou logo que lhe cobiçava a miúda. Mia não era sua namorada mas sim sua amante. Começara por ser sua cliente e sempre que o dinheiro acabava partilhava a sua droga e a sua cama.
Sempre submissa e prestável nunca se queixava nem falava de amor.
João apercebeu-se que Jorge não estava a gostar da situação. Seria ciúme?
Não, não era ciúme, era medo. Mas medo de quê?
João não se apercebia que Jorge tinha medo da solidão e que se relacionava com as pessoas de uma forma diferente da sua. Dependia das necessidades dos outros. Era como um vampiro que se alimentava do desespero, provendo assim as suas necessidades mais básicas.
Mas que estranha forma de vida a de Jorge.

- Com que então Jorge, namorada nova. Sempre que arranjas pito novo fechas-te em copas. Tens medo de a apresentares aos amigos?
- Ó João, e se falasses mais alto. Assim até o senhorio ouvia e vinha cá abaixo ver se recebia a renda em géneros, não é?

Fazia-lhe confusão quando Jorge falava assim das mulheres. Imaginava sempre um supermercado de gajas com loiras em promoção. “Leve duas pelo preço de uma”. Roupas não incluídas nesta promoção. Riu-se sozinho, deixando transparecer um ar irónico que estava a irritar ainda mais o Jorge.

- Vá meu está mas é calado e orienta-me cinco gramas de cena para poder me ir embora para o trabalho. Vê lá se não são as três do costume, seu surra.

Jorge disse que tinha pena mas não tinha nada. Só tinha para ele e pouco. Mais tarde passava lá um pessoal que ficara de o orientar. Ele que se aguentasse á “bomboca” e que lá passasse no fim da tarde.

- Caramba, que merda de vida. Só pensas em ti, nunca te pões no lugar dos outros. E agora como é meu, o que é que vou fazer à minha vida...

Jorge tornou-se pensativo, algo que nele não era de forma alguma habitual. A sua vida estava a tornar-se um inferno e condenar alguém ao seu tormento, empurrar mais um para o poço em que se iniciou a sua descida aos infernos já não o incomodava. Quase que apostava que o mesmo se tinha passado com ele, na sua primeira vez. Não se recordava nem de quem quanto mais quando ou aonde tinha experimentado heroina pela primeira vez. Só sabia que tinha arranjado uma companheira para a vida inteira. Com ela alimentava os seus sonhos de uma vida melhor. Vivia sempre rodeado por sacos e sacos de pó, pacotes, palhinhas e algodões. Falsos amigos e inimigos assumidos, que pela necessidade se vergavam á sua vontade, constituíam a sua realidade. Ficava com uma sensação de poder sempre que algum desgraçado por lá aparecia sem dinheiro para tirar a ressaca. Sentia-se um Deus com poder de vida e de morte sobre as pessoas.
Iam todos dar ao mesmo, de início achavam-se melhores que ele mas aos poucos aprendiam a respeitá-lo. A ressaca não perdoa e ele lá estava para cobrar a arrogância dos primeiros tempos. No entanto gostava do João pois ele sempre o tratara com amizade e respeito. Ficava para conversar em vez de se pôr logo a andar com o que pretendia no bolso. Jorge hesitou mais um pouco.
Sentia que perderia o resto de humanidade que ainda lhe restava. O João para ele significava como que uma ponte para os amigos que tivera no passado. Fazia-lhe sentir aquele calor das amizades de outros tempos, das férias na praia e da escola onde estudara. Lembrou-se da sua mãe, dos conselhos do seu pai e das queixinhas do seu irmão. O seu irmão sempre contara tudo á sua mãe e estivera na origem da sua expulsão de casa. A droga, sempre a droga. Vivia numa barraca de dois andares num bairro da lata de Lisboa, por baixo do senhorio que era também quem lhe fornecia o produto. No entanto não morara sempre ali. Ainda se recordava da casa de seus pais.
Uma vivenda à beira mar...
Que se lixe, ele é que sabe o que quer e de qualquer modo o dinheiro vai me dar jeito.

- Tem calma João, não tenho o que queres mas tenho aqui algo muito melhor. Vais ver que é espectacular. Ao princípio é um pouco estranho mas depressa te habituas. É algo que abre as portas da mente aos mistérios da vida.

Jorge mandou a mão ao bolso, sacou de um saquinho de plástico, preparou uma prata e disse:

- Toma, dás lume por baixo, bem devagarinho e chupas por este tubo, docemente...

II

O dia começava a se afirmar e a cidade acordava. Despertava ao sabor das vidas que nela bebiam o seu sustento. Não deixa de ser admirável como, numa realidade perfeitamente surrealista, as pessoas continuam a procurar a sua felicidade. A dificuldade em colocar o pão na mesa, um tecto sobre a cabeça e roupa no corpo já seria suficiente mas, ainda perseguimos as respostas a outras realidades mais abstractas.
Quem somos, de onde vimos e para onde vamos parece um lugar comum, algo que toda a gente deseja secretamente saber. Também sei que para um grande número de pessoas esta preocupação é um luxo a que não podem sequer aspirar e, por incapacidade ou por desilusão, muitas vezes desistem e encontram conforto nas pequenas conquistas da subsistência diária. Acalmam a insatisfação que sentem, contrariam a sua própria natureza e transformam-se no que é suposto, submissos a um modelo legitimado pela apatia.
No passado o poder era legitimado pela crueldade e pela força. O medo de morrer e de ver morrer sempre submeteu as pessoas à autoridade déspota de um psicopata.
O poder passava de pai para filho através da perfídia e do assassínio em conivência com os interesses instituídos.
Alianças forjadas na cobiça e na ambição sempre legitimaram a estabilidade e a podridão.
Como consequência do incesto, da devassidão e do adultério dos Reis e dirigentes, a santidade do matrimónio e a pureza dos Reais querubins deixaram de servir para legitimar o poder ilusório de séculos. Antes que se perdesse as regalias, as mordomias e a manipulação das massas, inventou-se a democracia.
Se as pessoas votassem naqueles que indicassem, submetendo-se assim á vontade da maioria tudo correria bem. Muda a merda mas as moscas são sempre as mesmas. No fundo o que interessa são as pessoas, tristes os que fazem as coisas certas pelos motivos errados e se sujeitam ao julgamento da História. O mundo é o que dele quisermos fazer. É feito de sonhos e de desilusões, da esperança de alguns e do exemplo de poucos.
A Democracia tem no entanto uma grande virtude, retirou da fogueira da inquisição o que lhe permite humanizar-se. O direito à diferença e o respeito pela condição humana nas suas mais estranhas manifestações são o sal da vida, a pedra de toque da civilização.
Quando as pessoas se aperceberem que todos os sistemas políticos se equiparam a equipas de manutenção e limpeza da Universidade da Vida, talvez então despertem.
Haverá sempre a necessidade de pessoas para limpar retretes, reparar pequenas avarias e varrer corredores. Alguns mais preguiçosos que a maioria quererão ser chefes. Ter o protagonismo é uma necessidade de almas perdidas que necessitam permanentemente da aprovação de terceiros para subsistir.
O que é realmente importante na vida são as pessoas, tudo o que aprendemos torna-se desprovido de sentido se não o partilharmos. Há uma consciência mais abrangente que é universal e que não é apanágio nem vaidade de ninguém. É de todos e de ninguém ao mesmo tempo.
A presunção de que controlamos e que de certa forma somos donos da verdade é uma ilusão.
Ela afasta-nos do caminho e lança-nos numa espiral descendente, obcecados por nós próprios, numa auto infligida solidão.
A imortalidade não se conquista, aufere-se, pois só continuamos a existir na memória e no coração das pessoas. De certa forma o céu ou o inferno não são tão abstractos como se julga. São realidades palpáveis das quais não se pode fugir. Só há realmente duas certezas na vida, nasce-se e morre-se. O que se passa pelo meio só a Deus pertence. É no momento da morte que nos apercebemos das reais consequências dos nossos actos.
Ao paraíso pertence a coerência, ao purgatório a ausência e ao inferno pertence a condescendência. Sempre soubemos distinguir o bem do mal e o caminho que trilhámos foi uma escolha nossa. Isto sim é democracia.
É na procura do perdão que a redenção se torna possível. Só nos aceitamos, com os nossos defeitos e virtudes, quando nos perdoamos a nós mesmos e nos revemos nas atitudes dos outros. Significa que passamos a ter consciência dos nossos actos, a saber quem fomos e no que nos tornámos. Podemos iludir qualquer juízo menos o nosso e é a partir da nossa autoavaliação que resulta a forma como encaramos a nossa morte. Face a isto qualquer sistema político assume o seu real significado.
Uma civilização não é só avaliada pelos seus avanços científicos ou pela qualidade da sua arte. Também deve ser avaliada pela qualidade de vida dos seus pobres, pela esperança dos seus doentes e pela ambição dos seus dirigentes. João sabia que se toda a gente á escala planetária tivesse consciência disto, o mundo seria um melhor lugar para se viver. Era uma utopia o que ele sonhava. Só mais tarde saberia que a sua serenidade estaria dependente de assumir a sua quota-parte dessa responsabilidade. De momento só sabia que não lhe apetecia salvar o mundo. Assumia-se como uma tarefa gigantesca, atraente sim mas inconsequente.
A prata brilhava e a bolha de heroína era de um castanho hipnótico...


III

João estava deslumbrado com o que sentia. Docemente algo lhe invadia o corpo, se insinuava na alma e lhe trazia um alívio e um bem-estar que nunca tinha sentido.
Não sabia por que é que sempre tinha olhado para a heroína com receio. Não era o horror que sempre tinha ouvido, antes pelo contrário, inebriava-lhe os sentidos e fazia com que tudo ficasse em perspectiva. Era a descoberta do século, todos os seus problemas existenciais estavam resolvidos. Tinha a resposta que todos procuravam, nada importava e tudo era acessório. A vida era da responsabilidade de cada um e ele responsabilizava-se pela sua. Já não tinha nada a ver com os problemas dos outros, agora só a sua realidade importava, bem haja.
Jorge apercebeu-se do efeito que a heroína estava a causar ao João. Invejou-o pois já não conseguia que as coisas fossem assim. Para ele a vida resumia-se a tentar reencontrar aquela sensação sublime da primeira pedra.

- Estás a ver, não te tinha dito que tinha algo bem melhor para ti, toma lá mais este saquinho que logo pagas, não te esqueças.

- Tudo bem Jorge, és um bacano, podes ficar descansado que logo que saia passo cá...

IV


Eram 11H00 da manhã. A realidade caía sobre si, implacável. O pânico instalava-se. É desta que sou despedido, o que é que vai ser da Isabel que está de baixa, do Tristão, da renda que já está em atraso?
Que se lixe, dou uma tanga ao patrão, faço um choradinho e o otário mama tudo.
Manda a mão ao bolso e um calafrio corre-lhe pela espinha, onde está a sua última ganza, aonde é que a pôs? Encostou o carro e vasculhou as algibeiras.
Nada, absolutamente nada. Deixei-a em casa do Jorge e o cabrão já a fumou concerteza.
Lembrou-se da prata que estava no bolso da camisa e conformado aceitou a alternativa.
Chegou o banco do carro para trás, acendeu um cigarrinho e começou a fumar. Um calor subiu-lhe novamente á cabeça e uma paz ainda estranha instalou-se.
Continuou a brincar com aquela bolha, fazia-a descrever curvas apertadas, dividia-a em pequenas partes e voltava a as juntar enquanto ia forçando o fumo, suavemente, para os seus pulmões.
O sol despontava sobre o Castelo dando-lhe um certo ar de mistério. Parecia que a qualquer momento um brilhante cavaleiro sairia a galope e restituiria a justiça ao mundo. Riu-se, cavaleiro, cavalo a analogia era engraçada.
Ele daria valor á vida que João fazia. Acordava cedo embora demorasse uma eternidade a levantar-se da cama, chegava atrasado ao trabalho mas trabalhava por dois, sustentava a família mas endividava-se para poder ter os seus pequenos vícios. Aquele cavaleiro iria saber dar valor aos seus sacrifícios.

A porta do Castelo não se movia e dos cavaleiros nem sinal. Deus tinha-se esquecido de certeza que João existia e S. Jorge já tinha morto o dragão.
Sentia-se um prisioneiro dentro da sua liberdade de viver. Uma masmorra eternamente bela e diversificada oferecia-lhe todas as alternativas para se esquecer que era pai, marido, filho de alguém. Afinal, ele não tinha pedido nada daquilo, nem a Deus nem a ninguém. Isabel tinha surgido na sua vida, depois o casamento e agora o Tristão.
Sem dar por isso, anestesiado pelos seus pensamentos, adormeceu. Algo se insinuava na sua mente, pé ante pé, murmurando-lhe que ele era um incompreendido, uma alma aprisionada que tinha direito de ser feliz. Sentia uma paz enorme. A sua consciência incomoda silenciou-se e, depois de tantos anos, voltou a conseguir sonhar.
Viu-se á beira-mar a voar com as gaivotas, livre no vento dono do firmamento.


V

Isabel sonhava com o seu mundo, com o seu filho brincando. Se ele soubesse o amor que sua mãe sentia por ele talvez desse valor ás suas constantes preocupações avisos e conselhos. Também, o que é que um bebé de nove meses sabe da vida?
Tem sempre comida, a atenção quase exclusiva de sua mãe e um mundo novo à sua disposição para descobrir. Tudo é novo, deslumbrante, o céu na terra como costumava dizer.
Não sabia se estava de baixa por uma qualquer doença ou se por uma maleita da alma. O seu João estava a afastar-se cada vez mais, entregue a uma realidade que não era a sua. Já nem o jovem Tristão conseguia que ficasse em casa, já não cativava o pai com as suas inocentes brincadeiras e a sua luminosa presença.
O que é que poderia ser mais importante que o amor, que o sentimento que nos invade e nos leva ao paraíso em cascatas de emoções puras e doces. Que falta me fazem os seus braços, seus beijos e suaves carícias.
Aquela fotografia sobre a cómoda em que, vestida de branco sonhava com a felicidade, com a alegria de uma vida a dois parecia cada vez mais longe.
Tinha acordado com uma enorme tristeza, sua inseparável companheira já há algum tempo. Tristão ainda dormia, regalado, na segurança da cama de seus pais.
Isabel chorou, nunca se tinha sentido tão só.
As suas lágrimas de dor caíam pela face, acariciando-lhe os seios e despertando um turbilhão de contraditórias sensações.

Era muito bonita e sentia-se só. Tinha fome de Amor e ansiava por carinho, companhia e sedução.
Já não se lembrava da última vez em que tinha estado com o seu João.
A alma sem consolo e o seu corpo órfão eram um peso difícil de suportar.
Diz-se que Deus deu á mulher a capacidade de chorar para poder suportar as agruras da vida, a ausência de seu marido, a ingratidão dos filhos e a solidão a que a virtude a condena.
Começou de novo a sentir um aperto no seu coração.
Era no entanto uma sensação já familiar e reconfortante.
A uma alma apaixonada sobrepunha-se o conformismo feito de uma existência solitária. Nestes momentos era um alívio poder pensar que tudo estava bem e que tinha de ser forte pelo seu Tristão. Pensou no seu filho, imaginou-se no futuro sofrendo e rindo enquanto aguardava a recompensa por tanto sacrifício. Tinha amor que chegasse pelos dois e um dia tudo iria melhorar. Diz-se que a fé move montanhas e que o amor é como uma espada de fogo nas mãos de um anjo protector.
Tentou recordar-se dos tempos em que tudo era mais simples e viu-se á beira-mar, quando eram felizes e o mundo era o seu jardim.

VI

João tinha conhecido Isabel à beira mar. O seu ar doce e a sua beleza inocente tinham chamado a sua atenção. Tinham ambos 16 anos na altura e o amor nasceu.
Para aquele rapaz adolescente, solitário e sisudo, foi como se milhares de sóis o envolvessem numa explosão de pura alegria e delicioso êxtase. Mostrou-lhe o seu mundo, partilhou o seu mar e as suas estrelas, sempre doces e omnipresentes. Como prova do seu amor mostrou-lhe os caminhos que levavam ao seu coração.
Por vezes tinha medo, medo que aquela felicidade terminasse e que o seu intimo ficasse à mercê do mundo embora, não acreditasse que tão doce criatura pudesse quebrar o seu coração e abusar da sua confiança.
Os amigos não compreendiam o que sentia. Tinham ciúmes do tempo que passava com Isabel. Deixara de jogar à bola, de brincar aos polícias e ladrões, de ir à pesca, de fazer parte das brincadeiras próprias para a sua idade. Era reguila e corajoso, salvando sempre os amigos de situações complicadas. Era alguém com que se podia contar e embora fosse um miúdo, sempre levara muito a sério certas coisas como a palavra, a honra e os bons costumes. Sempre que tinha que mentir, omitir ou faltar à sua palavra sentia-se mal. Parecia que o mundo ia acabar. Junto a Isabel esses valores eram coisas concretas a que ela dava valor. Aceitava-o como ele era, sem condições. Admirava-o e respeitava-o, apoiando-o sempre incondicionalmente nas suas decisões.
Os dias passavam e o amor florescia. O que sentia jorrava do seu intimo sem esforço. Só queria que não acabasse e que durasse para sempre. O seu único desejo era que Isabel o amasse com igual intensidade. Era nesses momentos que um medo profundo voltava a atormentar a sua alma. Sabia que nada durava para sempre e que tudo tinha um fim. Sabia que a dor podia se tornar insuportável e o seu coração vazio.
Este sentimento envergonhava-o, fazia com que se sentisse culpado quando Isabel lhe perguntava se a amava. Privava-o de usufruir em pleno a sua recém descoberta felicidade.
Sabia que era perfeitamente estúpido o que a razão lhe dizia pois preferia render-se ao seu coração.
O pôr-do-sol estava deslumbrante, um espectáculo de luz e cor em que as sombras tinham um papel essencial.
Ocorreu-lhe que o que muitas vezes não via tinha uma enorme importância. O preto e as sombras, as nuances e suaves pastéis eram o que conferiam relevo e esplendor a um evento que se repetia diariamente.
Da mesma forma, as alegrias e tristezas tinham a mesma importância na sua vida. Que bom que era não saber como realmente iria ser o dia de amanhã.

VII

Isabel procurava por João, já tinha corrido todos os locais por onde habitualmente andava sem o encontrar.
Tinha uma má notícia para lhe dar e a cada minuto que passava, o seu coração ficava cada vez mais apertado. Tinha esperança que o João compreendesse e aceitasse o que tinha para lhe dizer. No entanto, a maneira como ele a olhava quando lhe perguntava se a amava assustava-a.
O amor que sentia por ele era algo que a preenchia totalmente. Ao avistá-lo o seu coração palpitava e um calor percorria o seu corpo deixando-a numa dormência irreal. Os seus beijos arrancavam-lhe o chão debaixo dos pés, faziam com que flutuasse enquanto fechava docemente os olhos. Cada vez que o beijava rendia-se um pouco mais ao seu encanto, entregando sua alma àquele estranho amor.
No seu íntimo sabia que suas almas já se conheciam de existências passadas.
Falavam a linguagem das estrelas e comunicavam através de um simples olhar, sem necessidade de palavras. A sua alma gémea, que felicidade. As probabilidades de isto acontecer eram mínimas e no entanto tinha descoberto o João. Agora tinha de lhe dizer que se iriam separar.
Seu pai tinha aceite uma proposta de trabalho em outro país e ela iria junto. Isabel tudo tinha feito para alterar o rumo das coisas mas os argumentos dos seus pais eram esmagadores. Ela não tinha o direito de pensar só em si, afinal de contas o Amor é isso mesmo, estarmos dispostos a fazer sacrifícios e a tomar decisões que vão contra a nossa vontade.
Os seus pais eram os seus melhores amigos e por agora a sua realidade passava por estar com eles.
Se por um lado tinha a consciência de que amava o João, por outro sabia que ainda não era a hora de cortar o cordão umbilical. Tinha muito a crescer até que pudesse unir a sua alma á do João e usufruir de uma felicidade plena. Sim, usufruir e não possuir pois nada controlamos nesta vida. Isabel tentava convencer-se de tudo isto enquanto aguardava um milagre.
Alheio a isto tudo João procurava no horizonte a onda perfeita para acabar em beleza o seu dia.
O mar reluzia em tons de laranja e as ondas pareciam eternas no seu esplendor. Estava no seu pico secreto, um segredo bem guardado para os dias de confusão.
Gostava de ter refúgios onde se sentia bem.
Desde pequeno que estudava num colégio interno, sem privacidade nenhuma, fazendo do seu intimo o seu refugio. Era aí que se resguardava da violência diária arquitectando uma personagem que pudesse gritar bem alto o seu poder e a sua individualidade.
No entanto era um ser tremendamente sensível e tímido, o que tornava essa coabitação difícil. Esta dualidade sempre o acompanhou. Sem saber já tinha começado a lutar pela sua alma. Uma onda incrível aproximava-se, começou a remar e tomou posição. Preparou-se para entrar em sintonia com o planeta e lançou-se para a aventura.
O que mais gostava no Surf era a liberdade que sentia quando cavalgava nas ondas, a água em movimento e a intemporalidade dos momentos assumiam contornos de felicidade. Saiu da água com aquela sensação reconfortante que tanto procurava. Enquanto se vestia descobriu que uma Lua cheia subia nos céus.
Ainda não se tinha refeito do banho de energia que o Oceano lhe tinha proporcionado e já contemplava outro milagre. O firmamento em chamas sobre o mar, era rematado por uma enorme Lua num céu violeta, sobre a terra. Reparou na transição suave entre duas cores tão diferentes e apercebeu-se do todo que é o Universo.
Estava na hora do jantar. Isabel devia estar preocupada pois não lhe tinha dito que ia fazer Surf. Voltou para casa revivendo cada segundo daquela surfada, o gozo não ficava no oceano, acompanhava-o durante vários dias. Pelo menos até que outra surfada monumental como aquela o levasse para o paraíso.


(continua)













.